Divulgado o relatório da Operação 18 Minutos, que envolveu quatro desembargadores, dois juízes, advogados, um ex-deputado, um prefeito e ex-assessores do Tribunal de Justiça, vários jornalistas, blogueiros e até advogados disseram que alguns “foram inocentados” pela polícia federal. Uma impropriedade terminológica imperdoável.
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou os processos penais contra Lula, surgiu o termo "descondenado". Já os críticos de Bolsonaro ironizam com "bandido bom é bandido morto". Os conceitos jurídicos, no entanto, devem prevalecer sobre o senso comum e o sentimento de impunidade ou a trepidação social causada pelo inusitado.
Condenado e foragido Protógenes Queiroz e anulada a Operação Lava Jato, por que a população leiga, bacharéis, especialistas, mestres e doutores em direito ainda creem (tanto) na polícia federal, quase a exigir que simples investigados provem as suas próprias inocências? Qual a função social dos títulos e pesquisas acadêmicos? O que se espera de jornalistas, blogueiros e advogados?
Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência. (HC 73.338, rel. Celso de Mello, 1ª T, j. 13-8-1996 in RTJ 161/264)
Somos inocentes desde a Declaração de Nascido Vivo emitida por profissionais de saúde ou parteiras tradicionais. Se o parto ocorrer a mais de 30 km da serventia extrajudicial, os pais têm até três meses para realizar o registro. Nem temos nome, mas a inocência já integra o nosso plexo de garantias fundamentais.
O Estado de direito viabiliza a preservação das práticas democráticas e, especialmente, o direito de defesa. [...] Por isso usufruímos a tranquilidade que advém da segurança de sabermos que se um irmão, amigo ou parente próximo vier a ser acusado de ter cometido algo ilícito, não será arrebatado de nós e submetido a ferros sem antes se valer de todos os meios de defesa em qualquer circunstância à disposição de todos. (HC 95.009, rel. Eros Grau, pleno, j. 6-11-2008 in RTJ 208/640).
Os acórdãos invocados são propositalmente históricos, extraídos da Revista Trimestral de Jurisprudência do STF, de modo a ilustrar o quão sedimentada é a garantia constitucional do estado de inocência, além de constranger os professores e estudantes de direito a assumirem um papel transformador da sociedade. À míngua do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ninguém pode ser tachado nem tratado como culpado.
Não houve acusação formulada pelo ministério público, tampouco o STJ reputou válida a denúncia, nem apresentadas defesas técnicas por advogados. Por que, então, as práticas sociais, acadêmicas e profissionais divergem do discurso do direito?
Enquanto tivermos a incandescência gerada pelas eleições bienais, a mera existência de sindicâncias, inquéritos e procedimentos apuratórios serão usados para atacar a honra dos candidatos, com aplicação das melhores técnicas de viralização na imprensa tradicional e eletrônica e redes sociais. A par de exacerbar a polarização política, as polícias e os ministérios públicos são rascunhados como vestais.
As publicações dos portais das polícias civil e federal, do ministério público e dos tribunais de justiça e federal deveriam zelar pela sobriedade e disseminação de conteúdo, na esperança de que as demais instituições adequem seus procedimentos e entendimentos aos órgãos de cúpula. Lamentavelmente, também adotam a política de engajamento de conteúdo, contagem de cliques, curtidas e seguidores.
Por estas razões, os arquivamentos de investigações, as transações penais, os acordos de não persecução, as decisões absolutórias, a anulação de processos e outros benefícios ao implicado não atendem à linha editorial inquisitorial. Nenhuma polícia ou ministério público jamais noticiou: “após pedido de diligências da defesa técnica, a linha investigativa foi desviada de Fulano.”
As competentes e combativas defensorias públicas da União e dos estados estão divididas entre divulgar os serviços oferecidos, anunciar as conquistas em processos coletivos e dar publicidade às defesas em questões de alto impacto social e outros interesses difusos. É mais que compreensível não encontrar postagens sobre vitórias em matéria processual penal, de interesse de indivíduo.
A mudez e a resignação das associações de advogados criminalistas, das academias de letras e cultura jurídicas, dos institutos dos advogados, da OAB e das associações dos magistrados em lembrar a histórica advertência de Rui Barbosa:
Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo. (Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XXIII, Tomo III, p. 228).
Um viva às parteiras, que simbolizam o início da nossa jornada com a garantia do estado ou presunção de inocência.
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