Acredito que não seja novidade para ninguém que eu fui mãe aos dezesseis anos, depois, de novo, aos dezoito e, por fim, aos quarenta, ou seja, vinte e dois anos depois, a vida olhou para mim e, ironicamente me presenteou (desafiou) com a missão de recomeçar, por isso eu nunca cheguei a viver a tal da síndrome do ninho vazio, nunca coube na minha vida esse luxo.
Enquanto muitas mulheres, quando os filhos crescem, começam a preencher seus vazios com plantas, com “pets”, com viagens, com rotinas mais leves, eu segui. Segui no ofício que a vida me deu (ou me impôs) de cuidar de gente, sempre gente.
Por isso, “pets” nunca foram opção, e quando aquela última gravidez chegou, aos quarenta, eu entendi, com tanta clareza, que minha missão nesse mundo sempre foi essa: cuidar de gente e, hoje, com minha caçula se aproximando dos catorze anos, eu falo sem culpa, sem rodeio, sem romantizar: não quero mais compromisso, nem com uma planta, se for para ter que regar.
Minha neta? Quero para me lambuzar de amor, mas responsabilidade, cuidado diário, noites em claro… disso eu me aposentei. E, às vezes, me pergunto… será que isso é egoísmo, ou será que, honestamente, depois de tudo, eu já fiz a minha parte nesse mundo? E talvez, quem sabe, seja só a vida me dizendo que agora está tudo bem descansar?
Refletindo, concluí que me aposentei das atribuições da maternidade, daquelas que envolvem chupeta, lancheira, brinquedo espalhado e choros de madrugada, mas não da missão de cuidar de gente… dessa eu não me aposento nunca, porque hoje, sigo cuidando de gente no campo de batalha do processo penal, ou seja, no fim, meu ofício continua o mesmo: gente, cuidar de gente!
E foi exatamente com esse turbilhão dentro de mim que eu vivi uma cena que me atravessou inteira. Aconteceu em um recente voo.
Uma mulher embarcou com uma criança que devia ter no máximo dois anos e desde o instante em que aquele pingo de gente cruzou a porta do avião… o caos se instalou.
Um choro que não era manha, não era birra. Era um grito que rasgava a cabine, gritos de desconforto, agonia, pavor, sei lá… o mundo inteiro dentro choro.
A criança, simplesmente, não aceitava colo, nem chupeta, nem água, nem brinquedo, nem carinho, nada. Só queria uma coisa: se livrar do colo da mãe, como se aquele colo fosse um cárcere e os braços, grades.
Enquanto aquele pulmãozinho resfolegava de tanto grito, o desconforto no avião era quase palpável. Uns olhavam para a mãe com pena, carregada de solidariedade, enquanto outros torciam o nariz, trocavam olhares cúmplices, como quem dizia: “Por favor, cala essa criança, quero dormir”.
Na decolagem da aeronave piorou tudo, a mãe segurava aquele pequeno furacão humano no colo e ele se debatia, chutava, puxava cabelo, batia, beliscava o rosto da mãe e ela, coitada, com os olhos cheios de um cansaço que só quem carrega um filho no colo conhece, tentava conter o incontrolável.
Eu olhava e pensava: essa mulher não segura apenas um filho, ela segura o peso do mundo inteiro no colo.
Levantei e fui tentar ajudar. Peguei aquele pedacinho de gente, que parecia mais um tsunami do que um bebê e não consegui acalmá-lo.
Outras mulheres se levantaram. Uma fazia graça, outra oferecia brinquedo, outra tentava balançar, outra cantar, outra fazer oração em silêncio e por quase duas horas, aquele avião inteiro virou palco de uma mãe afundando, uma criança colapsando e seis mulheres tentando, em vão, segurar… um bebê.
Até que uma senhora se levantou, pegou a criança no colo e, como num passe de mágica… a calmaria, que parecia impossível, se fez. Perguntamos quem era e a mãe, já sem voz, respondeu: “É a avó!”
Como assim? Claro que ninguém perguntou, mas todo mundo pensou: por que essa avó ficou duas horas assistindo tudo calada?
O certo é que a criança adormeceu… por alguns minutos, pois bastou o piloto avisar que íamos pousar que o caos voltou, só que, dessa vez, era a avó quem tentava conter com tom de bronca, como quem acha que gritar resolve o que, por natureza, é incontrolável.
E ali, naquele pedaço de céu turbulento, eu lembrei dessa febre contemporânea que vem crescendo nas redes sociais: mulheres que se autointitulam “mães de bebês reborn”. Bonecos hiper-realistas com um silêncio que só quem nunca foi mãe de verdade acha confortável.
Bonecos que não choram, não puxam cabelo, não te viram do avesso e não te fazem duvidar da sua própria sanidade durante a madrugada, dentro de um avião.
E, antes que alguém se atreva a me chamar de insensível, eu digo sem piscar: eu sei que tem mulheres que buscam esses bonecos para tentar curar lutos e vazios e a essas, minha solidariedade, porque dor não se julga, todavia não é disso que eu estou falando.
Eu falo da romantização grotesca; da encenação patética; da tentativa covarde de transformar a maternidade, essa experiência selvagem, caótica, visceral, em algo domesticável, enfeitado, “instagramável”.
Falo de gente que leva boneco para tomar vacina, ocupar fila de prioridade, atendimento médicos em hospitais públicos, porque isso não é só excentricidade, chega a ser criminoso!
Não se brinca com os espaços que são destinados a quem vive, de verdade, a dureza do cuidado, porque maternidade não é passatempo. Maternidade de verdade é amar alguém que, muitas vezes, te faz querer fugir e, mesmo assim, você fica.
E ali, naquela cena do avião, estava escancarada a maternidade real. A maternidade que não vira trend, a maternidade que tem amor, mas também tem caos!
Mãe de verdade sabe que filho não cabe numa prateleira, filho cabe no colo. E esse colo pulsa, esse colo pesa, esse colo cansa e, ainda assim, a gente não larga.
Sâmara Braúna
Advogada há 24 anos, criminalista, especialista em liberdade, garantias constitucionais, em violência de gênero e crimes sexuais. Pós-graduada em Direito Penal. Conselheira Estadual OAB/MA e representante da OAB/MA no Comitê de Políticas Penais do Estado do Maranhão.
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