Prof Claudio Marques
Advogado, Mestre em Biodiversidade e Conservação (UFMA). Professor Universitário na Universidade CEUMA, nas áreas de Direito Civil e Direito Processual Civil. Servidor Público Federal (Técnico em Assuntos Educacionais na UFMA).
Viralizou nas redes sociais a decisão do Superior Tribunal de Justiça que permite a penhora de salário para pagamento de verba não alimentar. Muitos ficaram preocupados e estão achando que a partir de agora a penhora de salário será ampla, geral e irrestrita. Inicialmente explicaremos a penhora de salário e seus dispositivos legais.
A penhora consiste em "ato inicial, na execução por quantia certa, pelo qual se define quais bens do devedor se submeterão à futura expropriação judicial. É o primeiro ato de constrição ou de afetação do processo de execução por quantia certa." (Neto, 2020). Em termos simples, a penhora consiste na escolha de um bem do devedor para ser vendido e assim ser obtido o valor em dinheiro suficiente para o pagamento da dívida. Conforme preferência legal, a penhora de dinheiro aparece em primeiro lugar (artigo 835, I, do CPC).
O Código de Processo Civil estabelece no artigo 789 que o “devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Uma das restrições estabelecidas em lei são os bens impenhoráveis (artigo 833, do CPC).
Os salários, portanto, são impenhoráveis, na dicção do artigo 833, inciso IV do CPC. A legislação processual civil estabelece duas exceções à impenhorabilidade de salário: a) para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem (popularmente conhecida como pensão alimentícia); e b) importâncias recebidas que excedem a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais. Dessa forma, ressalvados os débitos relativos a obrigações de natureza alimentar, a penhora de salário, para o pagamento de verba não alimentar, nos termos da interpretação literal da norma em comento, só pode ocorrer se o salário exceder a 50 (cinquenta) salários-mínimos.
Aí o leitor pensa: opa, não ganho cinquenta salários mínimos, nem em sonho, aí posso fazer dívida tranquilamente e não pagar, pois “meu salário não será penhorado”.
Não é bem assim, pois a lei deve ser interpretada em harmonia com o sistema de execução o qual é movido por princípios estruturantes. Para a situação em tela destacamos dois: a execução tem por finalidade a satisfação do credor e a dignidade da pessoa humana. O primeiro significa que o processo de execução deve ser organizado para garantir a satisfação dos interesses do credor. Já o segundo princípio tem por premissa que não pode a “execução ser utilizada como instrumento para causar a ruína, a fome e o desabrigo do devedor e sua família, gerando situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana” (THEODORO JÚNIOR, 2023).
Deve-se, portanto, nas diversas situações conflituosas, sopesar os interesses em conflito. Em primeiro lugar, é lícito que a execução deve atender aos interesses do exequente (credor), mas deve-se, em segundo lugar, os atos de constrição judicial devem levar em conta a dignidade humana do executado.
O processo de execução deve ser dotado de efetividade. Um exemplo ajuda a aclarar como o processo de execução poder ser inefetivo. Um devedor, que ganha menos de cinquenta salários mínimos (a maioria esmagadora da população brasileira e eu também!), que não possui bens sujeitos à constrição judicial (exemplo, o carro está em nome da irmã ou irmão) pode muito bem fazer inúmeras dívidas e não honrar, pois sabe, de antemão, que não sofrerá qualquer ato de penhora das verbas salariais. Tal situação não contribui para que o processo de execução se torne efetivo.
É cediço que o processo civil é alicerçado na boa-fé (artigo 5º, do CPC). Além do mais, o artigo 8º do CPC assevera que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
Visando dar efetividade ao processo de execução, a jurisprudência passou a relativizar a regra de que apenas salários excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos podem ser penhorados para o pagamento de verba não alimentar.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp nº 1.837.702/DF, passou a permitir a constrição de percentual dos proventos dos devedores, de modo a garantir a efetividade do processo, sem afrontar a dignidade ou a subsistência destes e de sua família.
Um exemplo ajuda a entender a situação: imagine um jovem de 30 anos, servidor público, solteiro e sem filhos que ganha aproximadamente R$ 10.000,00 (dez mil reais mensais) de rendimento líquido. Uma penhora de 10% (dez por cento) ou 15% (quinze por cento) dos vencimentos, abatidos os descontos compulsórios, não viola a dignidade e o patrimônio mínimo do devedor. Para a realidade de quem ganha tal salário, o desconto equivale a uma prestação de financiamento de veículo ou curso de inglês, academia, escola de natação, etc. Tal desconto assegura a subsistência digna do devedor e também não se tona impeditivo do cumprimento demais obrigações contraídas e permite também a efetividade do processo de execução.
Por outro lado, imaginemos a situação de outro servidor que recebe R$ 10.000,00 (dez mil reais mensais). No entanto, há em seu comprovante de rendimentos: descontos de três pensões alimentícias, de empréstimos consignados, de plano de saúde GEAP, dentre outros. Além disso, ele comprova despesas com financiamento de imóvel, pagamento de escola para os filhos, etc. Neste contexto, uma penhora de dez por cento dos vencimentos pode causar violação à dignidade do executado e de sua família. Dessa forma, o salário dele continua impenhorável para as obrigações de natureza não alimentar.
A análise da circunstância fática de um precedente do STJ sobre o assunto, permite esclarecer os parâmetros judiciais necessários para a que a penhora de verba não alimentar ocorra.
O STJ no REsp nº 1976190 DF (2021/0385201-3, Relatora: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 25/02/2022) se deparou com a seguinte situação fática. A agravante, fiadora em contrato de locação comercial foi condenada solidariamente a pagar uma dívida no valor de R$ 159.000,11. O magistrado, em cumprimento de sentença, “determinou a expedição de mandado de penhora a ser cumprido junto ao órgão pagador da agravante, a fim de que promova o bloqueio mensal e sucessivo de importância correspondente 10%, dos vencimentos da agravante, abatidos os descontos compulsórios”. A agravante é funcionária da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), cujos rendimentos líquidos médios, auferidos nos meses de setembro de 2019 a janeiro de 2020, corresponderam a cerca de R$ 6.600,00. Neste caso, entendeu o Tribunal da Cidadania que tal constrição “não viola o seu direito a uma subsistência digna e também não impede de honrar suas despesas correntes, além de permitir a satisfação gradativa do crédito do agravado”. Asseverou ainda a Corte “que, neste momento, ponderou-se o equilíbrio entre os direitos do credor e do devedor, o que poderá ser revisto no futuro. Assim, fixado percentual razoável para a penhora, nada impede seu posterior redimensionamento, quer para reduzir, elevar ou mesmo encerrar a continuidade da penhora, a depender dos efeitos concretos gerados pela constrição”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo permitiu a penhora sobre 20% do salário do codevedor (TJ-SP - AI: 20125341020218260000 SP 2012534-10.2021.8.26.0000, Relator: Melo Colombi, Data de Julgamento: 03/03/2021, 14ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/03/2021). Ficou consignado ao final do acórdão que “se quiser afastá-la ou reduzir seu percentual, apresentar ao douto juízo "a quo" provas de incapacidade de saldar, ainda que parceladamente, a dívida”.
Há decisões em que a penhora incidiu sobre 30% do salário (TJ-SP - AI: 01001434920178269007 SP 0100143-49.2017.8.26.9007, Relator: Viviani Dourado Berton Chaves, Data de Julgamento: 25/08/2017, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: 25/08/2017)
O Superior Tribunal de Justiça deixou assentado que “essa relativização reveste-se de caráter excepcional e só deve ser feita quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares”. (EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1.874.222 – DF (2020/0112194-8) . Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Data de Publicação:24/05/2023).
Analisando os pronunciamentos judiciais é possível extrair as seguintes conclusões:
a) é possível a penhora de salário para pagamento de verba não alimentar, mesmo que o valor recebido seja inferior a 50 (cinquenta) salários-mínimos.
b) a relativização reveste-se de caráter excepcional e só deve ser feita quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares. Ou seja, a penhora não pode e nem deve ser efetivada de forma ampla, geral e irrestrita sem que haja uma análise pormenorizada do caso concreto (valor do salário, total de descontos, se há empréstimos descontados em folha, a quantidade de filhos, a existência de outras despesas com alugueis, planos de saúde, etc.).
c) A regra da impenhorabilidade de vencimentos deve incidir somente em relação à fração do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, de sua dignidade e da de sua família.
d) fixado percentual razoável para a penhora, nada impede seu posterior redimensionamento, quer para reduzir, elevar ou mesmo encerrar a continuidade da penhora, a depender dos efeitos concretos gerados pela constrição.
Dessa forma, a penhora de salário não se reveste de caráter absoluto, podendo, inclusive, o percentual pode ser reduzido (mudança de emprego com salário menor), elevado (aumento salarial) ou até encerrado a depender das circunstâncias do caso concreto.
Entendemos que a possibilidade de penhora de salário para pagamento de verba não alimentar, nos termos dos parâmetros acima expostos, contribui para efetividade do processo de execução, pois tal constrição só pode ser efetivada desde que assegure a manutenção do mínimo existencial ao executado, garantindo a dignidade dele e de sua família.
REFERÊNCIAS:
JÚNIOR, Humberto T. Curso de Direito Processual Civil. v.3. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646807. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646807/. Acesso em: 02 jun. 2023.
NETO, Olavo; PRADO, Pedro. 36. Penhora, Bens Penhoráveis e Impenhorabilidades In: ASSIS, Araken; BRUSCHI, Gilberto. Processo de Execução e Cumprimento da Sentença: Temas Controversos. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/processo-de-execucaoecumprimento-da-sentenca-temas-controver.... Acesso em: 2 de Junho de 2023.
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