Por Lorena Saboya
Advogada. Possui Doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (2021), mestrado em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal do Maranhão (2009), Especialização (pós-graduação) em Direito Ambiental pela Universidade Cândido Mendes (2005) graduação em Direito pela Universidade Ceuma (2003). Atualmente é professora titular da Graduação e Pós-Graduação da Universidade Ceuma, Membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, membro da Associação Brasileira de Direito de Energia e Meio Ambiente e membro da União Brasileira da Advocacia Ambiental. Advogada do escritório Correa e Saboia Advogados. Possui quase 20 anos dedicados ao Direito Ambiental, com diversas publicações em revistas nacionais e internacionais, bem como livros e capítulo de livros. Já ocupou cargos do alto escalão dos órgãos ambientais do Município de São Luís e do Estado do Maranhão, presidiu a Comissão de Meio Ambiente da OAB/MA por duas vezes e foi Conselheira do CONAMA, CONSEMA, COMUMA e CONCID. Participou da Comissão de Juristas para revisão do Código Estadual de Meio Ambiente do Maranhão (2021/2022).
A pormenorizada avaliação da formulação da Política Nacional de Resíduos Sólidos - Lei Federal 12.305/2010 - em sua concepção e desenho,desdobrando, ainda, as contradições e as inconsistências existentes, configurou o propósito desta pesquisa, vinculada à área de concentração Políticas Sociais e Programas Sociais e à linha de pesquisa Avaliação de Políticas e Programas Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Esta tese deriva de estudos iniciados no Mestrado em Saúde e Ambiente da UFMA, em 2009, momento no qual pude investigar a necessidade de regulação da matéria "resíduos sólidos", que, naquele contexto, ainda não existia.
Ademais, este trabalho resulta ainda de experiências profissionais, em especial, o período em que exerci cargos públicos na Secretária de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão. No mundo todo, assume vulto a preocupação com a solução a ser conferida à destinação dos resíduos sólidos, recorrente objeto de intensa discussão, seja entre formuladores de políticas públicas e órgãos da Administração Pública, seja por parte da sociedade em geral ou mesmo em âmbito acadêmico. Nesse sentido, a ideia de expansão de novos mercados, a dinamização dos fluxos comerciais e as perspectivas territoriais revelam uma realidade que ainda não proporcionou a devida reflexão dos impactos socioambientais, como a escassez de matéria-prima e a degradação da qualidade de vida das sociedades. Os avanços produtivos são preferencialmente direcionados tanto para os produtos de consumo rápido quanto para a produção generalizada do desperdício (MÉSZÁROS, 2002, p. 635) - resultado da chamada sociedade de consumo, que, com o aumento populacional e a concentração humana em áreas urbanas, bem como a falta de políticas adequadas, acaba contribuindo para agravar o cenário atual. Nas sociedades modernas de risco', o investimento nas diversas alternativas de produção é significativamente maior do que em medidas mitigadoras ou redutoras de danos ao meio ambiente. O consumo gera interesse por si próprio, não havendo qualquer preocupação com as danosas consequências (GUERRA, 2012).
Altvater (1993) aponta que a dinâmica produtiva capitalista e subsequente consumo desenfreado promovem uma verdadeira "ação de pilhagem dos recursos" - na qual a exploração ultrapassa os limites de sustentabilidade dos recursos e a capacidade produtiva e regenerativa do planeta. Isso se dá desde o dispêndio de energia até a tendência de transferir os resultados do impacto ambiental para as populações ou nações menos industrializadas ou abastadas. A própria lógica do sistema é pensada e construída no sentido de funcionar gerando uma dependência intrínseca entre produção e consumo, desconsiderando-se quaisquer efeitos no espaço ou território. A geração de resíduos sólidos é, sem dúvidas, o resultado mais expressivo da produção em larga escala, bem como do consumo exacerbado das sociedades modernas, em busca do atendimento aos interesses do mercado.
Cabe lembrar que a degradação ambiental por resíduos sólidos vem inquietando as mais diversas culturas e realidades sociais, pois o reflexo dessa "corrente" é sentido em todas as partes do mundo, já que as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos (ARENDT,2009).
São incalculáveis as repercussões ambientais decorrentes do consumo desenfreado de produtos e do tratamento não adequado. Desse modo, a natureza é agredida duas vezes: uma na geração (extração de matéria-prima, muitas vezes sem obediência aos critérios legais de proteção); a outra no descarte dos resíduos de forma inadequada no solo (poluição de toda ordem).
A situação dos resíduos sólidos representa, de modo efetivo, as escolhas não racionais dadas ao longo do tempo por parte das administrações e dos próprios consumidores. Por meio da análise da situação dos resíduos sólidos, é possível identificar as verdadeiras discrepâncias, ainda que políticas, que influenciam diretamente essa realidade.
Portanto, a geração de resíduos passou a representar um dos resultados negativos do processo de produção em larga escala, decorrência do sistema capitalista, cujo palco de evidência é o ambiente urbano, ou seja, nas cidades fica patente a forma de tratamento dos resíduos sólidos, condicionada às necessidades da população, a qual, nesse aspecto, é o que dá o tom ao quantitativo gerado e às drásticas consequências relacionadas.
Nesse aspecto, este estudo parte de uma grande questão, orientada pela chamada "dúvida radical" de Bourdieu, abrangendo, exatamente, o dilema vivido pelas sociedades atuais acerca do que fazer com a crescente geração de resíduos sólidos, que se tornou um grande problema global social, econômico e ambiental (BOURDIEU,1990).
No Brasil, a gestão de resíduos sólidos desafia não somente as administrações públicas locais, que devem aliar as ações de planejamento ao custo das consequências negativas ao ambiente, mas, também, todos os sujeitos envolvidos no processo e suas determinações, que repercutem, direta indiretamente, no sucesso do sistema.
Esse cenário complexo pode ser explicado pelo lento avanço, inclusive tecnológico, dos métodos de implantação do sistema de tratamento dos resíduos sólidos (geração, coleta e disposição final), isto é, houve uma sobrecarga de geração sem investimento em soluções, o que compromete a qualidade de vida do homem moderno. Vale acrescentar que o crescimento do volume de resíduos no Brasil não está atrelado ao aumento populacional, pois, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE, 2018/2019), nos últimos dez anos, tanto a população aumentou 9,65% quanto o volume de resíduos, 19%.
Apesar do expressivo crescimento do número de resíduos, que pode ser atribuído, inclusive, à ascensão social da população, consequência do aquecimento da economia nos anos 2000, 38% dos brasileiros (78 milhões de pessoas) continuam sem acesso a serviços de tratamento e destinação adequada de resíduos (ABRELPE, 2018/2019). O que não é diferente da realidade mundial, na qual somente metade da população é atendida por coleta de resíduos sólidos (ISWA 2013).
As previsões de futuro não são nem um pouco animadoras, visto que, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), para o ano de 2025, espera-se um aumento na produção de resíduos sólidos, no mundo, incluindo o Brasil, de 1,3 bilhão toneladas/ano para 2,2 bilhões toneladas/ano, sendo que quase a metade desse total é gerada por menos de 30 países, justamente as nações mais desenvolvidas do mundo.
Esses dados alarmantes atestam, de forma clara, que a velocidade de geração de resíduos não acompanha a correspondente evolução de tecnologias ou de políticas de destinação ambientalmente adequadas. É a prova pura de uma "não política".
Frise-se que, ao longo do tempo, a geração de resíduos acaba diferindo quanto à tipologia. Com o avanço da tecnologia, há a consequente produção de resíduos cada vez mais difíceis de serem tratados ou descartados na natureza sem ocasionarem impactos ambientais significativos, como nos recursos hídricos e no solo.
Nessa perspectiva, o desafio que se apresenta é, justamente, a complexidade em que a temática dos resíduos sólidos está imersa. Assim, pesquisar sobre resíduos sólidos é, ao mesmo tempo, conferir indicadores de qualidade de vida, bem como de tudo a ela associado, ou dos elementos necessários à sua manutenção, abrangendo, nesse contexto, os direitos fundamentais da pessoa humana relacionados ao bem-estar e à vida digna, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde, à habitação, ao lazer, à segurança, ao trabalho e às cidades sustentáveis (OKADA et al., 2009).
A discussão legal sobre resíduos sólidos no Brasil ocorreu de forma tardia. Houve um atraso de quase duas décadas, visto que o projeto de lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) tramitou no Congresso Nacional de 1992 a 2010. A PNRS - Lei 12.305, de 2 de agosto de 2010 apresenta-se, assim, como a primeira legislação formal que regulamenta a maneira como o país deve gerir e tratar os seus resíduos sólidos.
A análise das políticas ambientais no Brasil deve ser feita com cautela, considerando-se sempre que, de forma geral, o despertar ambiental foi iniciado somente na década de 1980, quando foi criada a Política Nacional de Meio Ambiente^ (PNMA) e, em seguida, o capítulo específico sobre meio ambiente na Constituição Federal de 1988.
São, portanto, apenas quatro décadas de implementação legal da política ambiental - especificamente, no que se refere aos resíduos sólidos, dez anos de legislação, apesar dos 21 anos de tramitação® da lei. A lei que instituiu a PNRS configurou, dessa forma, um marco para a gestão de resíduos sólidos no Brasil, propondo, além de práticas inovadoras, baseadas em princípios e diretrizes especificas, responsabilidades e metas aos diversos sujeitos envolvidos, bem como novos outros instrumentos de controle (ALMEIDA, 2016). Por isso, o seu processo de formulação se torna bastante complexo, gerando a necessidade de intensas reflexões.
Devido a essas características peculiares, pelo seu longo tempo de negociação, por suas inovações de caráter técnico e sociais e pelos diferentes setores impactados com obrigações, a análise de sua formulação torna-se extremamente complexa.
Um dos princípios destaques trazidos pela lei foi o da responsabilidade compartilhada entre cidadãos, empresas e Poder Público, bem como o da visão sistêmica da gestão de resíduos sólidos, levando-se em conta as dimensões ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública, instituindo, ainda, o sistema de logística reversa, o qual responsabiliza o consumidor final pelo retorno de determinados produtos ao fabricante.
Diferentes categorias ou tipologias de resíduos sólidos foram estipuladas pela lei, já que a produção pode se dar tanto em um ambiente industrial ou empresarial quanto, também, na esfera doméstica, representando consequências ambientais distintas (BRASIL, 2010a, 2010b).
Após a vigência da PNRS, observa-se uma melhora tímida nos sistemas de gerenciamento de resíduos sólidos das cidades no Brasil. Esses acanhados passos podem ser resultado da própria pressão sofrida pelos gestores locais, advinda dos órgãos ambientais ou do Ministério Público, que vêm desempenhado um importante papel na fiscalização e cumprimento da lei.
Mas, mesmo assim, não há motivos para comemoração. Praticamente nenhuma meta estipulada pela Lei foi atingida. De acordo com dados apresentados pela Abrelpe. em 2016, 41,74% dos resíduos sólidos ainda possuíam destinação inadequada ?
De acordo com a mesma pesquisa, no caso específico do Estado do Maranhão, verificou-se a exclusão de 33,9% da população da coleta de resíduos sólidos, ou seja, apenas um universo de 66% da população goza do serviço, cabendo aos demais a utilização de técnicas insalubres e inadequadas, como a queima do lixo.
Iniciativas voluntárias (ecopontos) têm sido realizadas no município de São Luís em relação à coleta seletiva, enquanto o Brasil se destaca na reciclagem de alumínio em nível mundial, ocupando posições de destaque (ABRELPE, 2015b).
A existência de lixões no Brasil tem sido um problema, com pessoas trabalhando em condições insalubres e degradantes à dignidade humana. O número de lixões praticamente dobrou em 2019 (CGU, 2020). Estima-se que havia cerca de 800 mil catadores de materiais recicláveis em atividade no Brasil em 2012, e esse número aumentou para quase 1 milhão atualmente (MNCR, 2019).
A pesquisa realizada busca compreender o contexto socio-histórico do tratamento de resíduos sólidos no Brasil, as determinações políticas, econômicas, ambientais e sociais que contribuíram para a formulação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), os sujeitos envolvidos nesse processo, os princípios políticos e ideológicos da PNRS, a contribuição da PNRS para a destinação adequada de resíduos sólidos, a coerência dos elementos constitutivos da política e a adequação da PNRS às diferentes realidades e contextos locais do país.
A PNRS envolve diversos sujeitos, como os municípios, cidadãos, indústria de produção e catadores de materiais recicláveis, e a pesquisa analisa as relações e interesses desses sujeitos no processo de formulação da política.
O estudo busca fornecer subsídios para repensar a política de resíduos sólidos, sua concepção e desenho, além de propor estratégias para uma adequada gestão desses resíduos. Também tem o objetivo de oferecer reflexões aos gestores públicos sobre o tratamento de resíduos sólidos e contribuir para a discussão acadêmica no campo das políticas públicas e do meio ambiente.
A pesquisa avalia criticamente os interesses, as determinações e os sujeitos envolvidos na formulação da PNRS, visando garantir o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações presentes e futuras.
Os objetivos da pesquisa incluem identificar o contexto socio-histórico do tratamento de resíduos sólidos no Brasil, avaliar as determinações políticas, econômicas, ambientais e sociais que contribuíram para a formulação da PNRS, identificar os sujeitos, interesses e racionalidades presentes no processo de formulação da política, identificar os princípios políticos e ideológicos que orientaram o discurso da PNRS e verificar a coerência e consistência dos elementos constitutivos da política em relação aos seus objetivos.
Leia a íntegra da Tese em: Avaliação da Política Nacional de Resíduos Solídos: fundamentos, determinações e sujeitos no processo de formulação da política
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